quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O teatro burguês do século XXI

Tudo começou por obrigação profissional mas continuou já por desfastio perante um Portugal que teima em viver às arrecuas e a dar uns valentes passos de caranguejo em direcção ao país do Eça: dei por mim, amiúde, a pirar-me para o século XIX.

Ainda anteontem uma amiga me mandou um convite para o lançamento do seu livro sobre Lisboa do final do século XIX e princípio do XX  na FNAC Chiado e eu fiquei a pensar, qualquer dia já nem volto. Um dos problemas deste vaivém é que muitas vezes quando voltamos, ou melhor, quando pensamos que voltamos, não conseguimos deixar de olhar para os dias de hoje sem esse sarcasmo que Eça devotava aos dias de ontem.

Aconteceu-me isso no outro dia quando fui ver um espectáculo ao Teatro São Luís (antigo Teatro D. Amélia, ontem como hoje vizinho do Trindade). Já depois da função terminar, quando os actores vêm agradecer, vi em toda a sua potência como o teatro burguês do século XXI já não é o mesmo do final do século XIX.

Bem podem os encenadores, os actores, todos os criativos, comungar dessa festa apoteótica que foi a revolução teatral que percorreu todo o século XX, escolhendo um qualquer nicho para desenvolverem o seu projecto artístico (ou não, fazendo uma deriva identitária entre a explosão de sentidos que decorreu no século passado) . O teatro burguês do século XXI é imune aos projectos artísticos, é construído nas nossas plateias (com a aceitação, claro, dos nossos actores, dos nossos encenadores, dos nossos criativos) e é um torniquete implacável para quem (seja por imodéstia, por ingenuidade, ou por bravata) julga que o pode vencer no seu terreno. Por muito paroxismo que a burguesia assinale dentro de si - há tão pouco em comum entre a pequena e a média ou alta burguesia (e a tarefa não fica facilitada quando as substituímos pela classificação que usamos para os ovos no supermercado) - a burguesia, enquanto classe em emancipação, tem pouca capacidade de se rir de si mesma. Vai ao teatro como vai a todo o lado, à procura de um espelho, em busca do narciso perdido. Tem medo do contágio do riso alarve do povo e ao mesmo tempo teme, por suspeita de que estejam a gozar com ela, da ironia cínica e mordaz de uma aristocracia que quanto mais decadente mais azeda e surpreendente consegue ser.

Uma das evidências mais bizarras desta entrada do teatro burguês pelo teatro actual é para mim a encenação dos agradecimentos. Aspecto banal, irrelevante, parece. Entrou como um modismo dos encenadores que tinham de controlar todo o espaço de relação do espectáculo. Eu também estava lá, também vi entrar no nosso teatro essa praga que destrói a última réstia de ilusão de que, na circunstância agorética da relação entre o palco e a plateia, possa haver algo de autêntico. E hoje alastra-se, pega-se, das salas mais convencionais às salas menos convencionais, não há tempo para o espectador digerir o espectáculo, a ânsia narcísica estende-se da plateia ao palco, é preciso rapidamente ouvir o som das palmas, diluir tudo no gosto, na opinião rápida, fácil, a tempo de apanhar o próximo zapping.

O teatro burguês cansa-me de morte, mata-me.